O COVID, o Motion e ser mulher imigrante na Inglaterra

Uma coisa que sempre me deixou ansiosa em relação a trabalhar com motion design era que eu não me considerava boa ilustradora (nem meia boca mesmo) e tinha medo que minha formação em cinema não fosse o suficiente pra conseguir trabalhar com design, mas tenho amigos que nunca fizeram um curso, nunca pararam pra estudar e que não conseguem seguir os 12 princípios da animação e que se vêem como os melhores animadores do planeta. Não conseguia entender como.

Pra quem não sabe, eu caí de paraquedas no mundo do Motion Design em 2017 quando fui convidada a trabalhar com isso numa empresa no Brasil. Na época estava trabalhando com direção de arte e social media para um escritório de advocacia, um sindicato e fazendo sonoplastia e locução numa rádio – tudo meio que na camaradagem e na base do “estágio” (já estava formada, então não dava pra ser estágio mesmo). Antes disso, já fazia minhas edições (a maioria de curtas universitários) e brincava bastante com VFX, mas longe de ser profissional, só (achava) que sabia mexer no after.
Quando recebi essa oportunidade, passei a trabalhar 9 horas por dia, 1 hora de almoço (10 horas na empresa), e estudar no tempo que restava. Dormia e sonhava com o motion, acordava e sabia o que fazer nos projetos (e isso acontece até hoje). Estava exausta, mas aprendia muito todos os dias – não é um processo linear, então tinha dia que estagnava mesmo, às vezes estagnava por semanas até conseguir fazer uma coisa diferente. E foi assim por uns anos (é assim até hoje).

Esse ano vim parar na Inglaterra. Depois de algum planejamento e muito estudo, resolvi fazer o curso do Layer de Motion Design Essencial 2.0 pra aperfeiçoar o que eu sabia e me joguei. Já era fluente e tinha habilitação para dar aulas de inglês e morria de medo de mudar pra outro país da Europa sem falar 100% a língua. É bom ressaltar aqui que eu tenho cidadania européia e isso facilita (muito) a minha entrada e permanência aqui, podendo dar entrada em todos os documentos legalmente. Eu só não esperava, como talvez ninguém esperasse, a chegada do COVID-19 junto comigo.
Entrei no Reino Unido e pouco tempo depois TUDO fechou na Europa inteira. Morri de medo, lógico. Liguei pros amigos motion designers (só conheço homens aqui) e ninguém sabia muito bem o que fazer pra me ajudar. Fiz um freela aqui, outro ali, trabalhei em cozinha, em limpeza e só não trabalhei em delivery porque eu não sei dirigir no lado errado da rua. Mandei currículo e portfólio pra todos os estúdios que descobri na internet e achei bem esquisito não receber respostas de alguns em que esses amigos trabalhavam.
Conversei de novo com os amigos até um deles me dizer, com todas as letras, que nunca tinha trabalhado com mulher animadora. E foi aí que meu mundo começou a desabar outra vez. Como assim nunca trabalhou com mulher animadora na Europa? Não é aqui que todo mundo é super feminista?

Tudo bem que no Brasil, antes de eu encontrar o Garotas do Motion, me sentia um E.T. porque a maioria das pessoas que trabalhava comigo era homem. Na tal da empresa que eu entrei, tinha eu e mais 3 mulheres que trabalhavam com motion, os outros 36 eram homens. Mas uma pessoa com quase 10 anos de carreira nunca ter trabalhado com uma animadora mulher é algo que eu achava impensável. Ainda mais depois de ouvir tanta gente dizer que a Europa é tão mais igualitária (politicamente correta, talvez?) e “evoluída” nessas questões.
Tudo bem que talvez seja uma experiência muito isolada, mas é extremamente esquisito que ela exista.

A gente também escuta que ninguém aqui é xenofóbico. “Os únicos países da Europa que são xenofóbicos são a França e Portugal” foi algo que ouvi trocentas vezes antes de me mudar, apesar do Brexit só ter passado por questões bem xenófobas.
No outro texto sobre Inglaterra, falei o que já ouvir de donos de estúdios, mas não posso deixar de ressaltar que a Europa como um todo se vende como um lugar mágico, cheio de cultura, e a idéia de que a União Européia acabou com a xenofobia entre eles. Se a xenofobia antes era pior ou não, eu não sei dizer, porque nem seria possível eu saber, mas que ser um imigrante aqui é motivo para micro agressões (no caso dos ingleses, da maneira mais passivo-agressiva possível) a todo momento, isso é.

Ser imigrante e mulher é algo que nos faz minoria da minoria, isso que eu sou branca e tenho muitos privilégios por esse motivo (apesar de já ter sido perguntada se eu considerava minha raça “branca mesmo”). Não conseguiria imaginar a vida de exclusão que seria ser mulher, negra e imigrante, mas sei que é o caso de muitas outras (não só na Inglaterra).
Na outra semana, tivemos uma live super interessante sobre esse assunto no canal do Layer Lemonade no youtube, com a participação de quem tem lugar de fala sobre questões de raça na comunidade e também de machismo. Como eu não tenho lugar de fala na questão de raça, deixo a palavra com eles (é interessantissimo assistir e se abrir pro assunto, se desconstruir cada vez mais). Ontem mesmo falamos com o Wander Deley no Papo Lemonade e ele explicou um pouco sobre a questão de exclusão da periferia. Alguns outros artistas periféricos também tem feito vários trabalhos incríveis pra falar de e para a periferia, colocar de verdade a cara do Brasil na animação. Mas eu resolvi vir falar aqui porque muita gente acha que não lidamos com essas questões fora do Brasil e Estados Unidos (tem quem ache que nem nos EUA se lida com essas questões de exclusão e preconceito na comunidade).

A nossa comunidade, infelizmente, ainda é muito tóxica no mundo todo e eu só to falando brevemente de uma experiência que é bem pessoal e “branda” quando comparada com a de outras pessoas no motion.
Quantas vezes a gente não escuta um colega objetificando a modelo ou atriz do trabalho que tá sendo editado, ou escuta coisas nojentas sobre casting em agências, ou até mesmo mandam um cara te ajudar quando você praticamente já acabou o trabalho só porque sim? Já viram, por exemplo, agência que não se importa em pagar 20k pra um homem com um portfólio idêntico ao de uma menina e pra ela chorar pra pagar 3k? Nem precisa fazer a experiência, é só conversar com as moças que vocês conhecem na área e ouvir o que elas tem pra relatar. É de doer os ouvidos.

Termino essa reflexão, até um pouco sem pé nem cabeça, em forma de um quase desabafo e espero, de coração, que isso seja pelo menos mais um texto que faça as pessoas pensarem – ou que vocês cliquem nos hiperlinks e assistam gente falando sobre isso bem melhor do que eu – e entenderem que isso não é uma questão só do Brasil, mas de um sistema muito estranho que sobreviveu por muito tempo, ultrapassado e cheio de motivos para ser mudado.

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