Manual de Exploração do Iniciante

Nota: Esse post é baseado em experiências próprias na indústria de motion, e sendo assim, não possui verdades absolutas. Contudo, essas experiências foram vividas pessoalmente ou observadas acontecendo com outras pessoas – colegas de trabalho, por exemplo -, e isso é suficiente para fazer esse compilado que chamo de “manual”.

Quando entramos na indústria de Motion e começamos a ter contato com pessoas da área, é muito comum ouvirmos ou lermos relatos de que no início de carreira “devemos” nos sujeitar a situações atípicas como trabalhar de graça, cobrar pouco para fazer jobs, de modo a segurar o cliente, e acumular funções. Mas será que para ingressarmos no mercado, realmente devemos nos permitir ser explorados dessa forma?

Segue abaixo o Manual de Exploração do Iniciante, com situações exploratórias que aceitamos como “condições” de trabalho, que na verdade devemos buscar combater se realmente quisermos trabalhar nesse mercado de maneira um pouco menos ingrata. O manual foi escrito propositalmente em primeira e terceira pessoa, de forma breve e de modo sarcástico, sugerindo uma verdade velada.

Anunciando vaga de trabalho

É pelo anúncio de vaga que iremos selecionar a dedo somente o(a)s candidato(a)s que preencham os “requisitos” exigidos. Esses requisitos não existem ou são totalmente dispensáveis; mas finjamos que são importantes.

  • No anúncio use termos técnicos que confundam os candidato(a)s à vaga.
  • Exija um nível de habilidades não compatível e muito além da vaga anunciada. Exemplo: Vaga para Motion Designer júnior, com experiência em edição de vídeo, colorização, captação de vídeo e áudio, sound design e noções de ilustração. Se souber 3D no Cinema 4D é um diferencial, etc. (Vocês entenderam, quanto mais melhor).
  • Anuncie um salário bem abaixo da função que será exercida, ou…
  • … Peça pretensão salarial de forma arbitrária.
  • Não esqueça de enumerar vários benefícios de modo a deslumbrar o(a)s candidato(a)s, como auxílio pet e psicólogo. Mas evite comentar sobre pagar horas extras e banco de horas.
  • Tente transparecer que a função será mais simples do que realmente é.
  • Exija uma cena de animação como teste de habilidade. Não se esqueça de não remunerar.
  • Entre em contato com um(a) candidato(a), marque uma call e se não gostar, simplesmente suma.

Na entrevista:

A entrevista é o processo que conversamos com o(a)s candidato(a)s selecionados e apresentamos melhor a nossa empresa. É aqui que vamos repetir várias coisas já ditas no anúncio, para reforçar as vantagens intrínsecas de trabalhar conosco.

  • Sorria.
  • Seja cordial e profissional.
  • Repita sobre os benefícios da vaga citados no anúncio, para parecer que são realmente vantajosos.
  • Omita informações cruciais sobre a contratação, como por exemplo, que não pagaremos hora extra ou temos banco de horas, mesmo se contratarmos em regime CLT. Se contratarmos PJ, melhor ainda.
  • Diga que faremos horas extras “eventualmente”.
  • Use termos em inglês para impressionar o candidato. Além disso faça questão de mostrar que existem muitos Seniores na empresa.
  • Chame os Seniores para entrevistar o candidato.
  • Fale e pergunte sobre questões técnicas, pra ver se o candidato sabe o que está fazendo (mesmo que nós não saibamos).
  • Peça e confirme a pretensão salarial novamente, para negociar e compensar nos benefícios.
  • Faça da entrevista breve.

Primeira semana no trabalho dos sonhos

O(a) candidato(a) foi contratado(a), hora de apresentar a empresa dos sonhos.

  • Comece o primeiro dia com 3 reuniões pra mostrar serviço.
  • Na primeira reunião, apresente a empresa e fale sobre as dinâmicas sociais que acontecem por lá, com certeza são bem mais importantes que condições decentes de trabalho.
  • Lembre-se de enfatizar o lado positivo da empresa, como ter vários ambientes de lazer que ninguém terá tempo de usar, porque né… Pauta cheia, sem tempo irmão.
  • Confunda o(a) contratado(a) com muita, mas muita informação inútil logo de cara.
  • Certifique-se sempre que o(a) contratado(a) está deslumbrado(a) com o ambiente e com os projetos que são desenvolvidos na empresa; diga o quanto a empresa é grande.
  • Deixe sempre claro, repita exaustivamente que todo(a)s iremos crescer junto(a)s e fazer “aquele job”.
  • Na segunda reunião lembre da primeira reunião.
  • Deixe o(a) contratado(a) bem aéreo(a) sobre quando começará a trabalhar efetivamente.
  • A partir da terceira reunião, desvie a função do(a) contratado(a) e jogue a bomba.
  • Não esqueça de dizer que todos os jobs são “pra ontem”, mesmo que o prazo original – e as alterações -, só venham daqui duas semanas. É o que chamamos de “prazo fantasma”.
  • Lembre-se: quanto mais confuso, mais fácil de ludibriar.

Esse foi o primeiro dia.

  • A partir daqui, a função se torna real, é hora de colocar o cara/a moça para trabalhar de verdade.
  • Desloque totalmente a atenção do(a) contratado(a), fazendo com que acumule várias funções alheias a original. Diga que ele(a) “deve ser como uma esponja, todo aprendizado é lucro” afinal, ele(a) é iniciante.
  • Certifique-se que o(a) contratado(a) está fazendo hora extra não-remunerada.
  • Certifique-se novamente do ponto anterior.
  • Faça o(a) candidato(a) se sentir caindo de paraquedas no workflow da empresa, pegando o jeito da coisa aos trancos e barrancos, afinal, temos auxílio psicólogo.
  • Não se esqueça de marcar mais reuniões ao longo do expediente onde muito será falado e nada será resolvido.
  • Deixe o cliente deitar e rolar na equipe, pedir incontáveis alterações e ter ideias novas a cada versão do job.
  • Ao fim da primeira semana, tenha certeza que o(a) contratado(a) trabalhará sábado e domingo e que está ok com isso.

A segunda semana…

  • Para algumas pessoas, não existirá a segunda semana, mas se houver, pegue a primeira e eleve por 10.

O contrato e a demissão

Caso o(a) contratado(a) venha a ser demitido(a) ou peça demissão, é aqui que garantimos que somente a empresa se beneficiará com sua saída.

  • Contrate no esquema PJ e exija que o(a) contratado(a) trabalhe em horários pré-definidos.
  • Exija que o(a) contratado(a) cumpra aviso prévio caso se demita, mesmo que seja PJ.
  • Trate um PJ como CLT.
  • Mande mensagem para o(a) contratado(a) após o horário de expediente, afinal, ele(a) é PJ, ou seja, para nós é um freelancer.
  • Se receber um pedido de aumento, diga que não é possível pois não queremos quebrar a empresa e ter que demitir alguém no futuro por essa decisão “precipitada”.
  • Ao receber um pedido de demissão, finja incredulidade e “tente entender” o que aconteceu, afinal, estamos sempre buscando melhorar nossos processos.
  • Se demitir… Estamos sempre buscando melhorar nossos processos.
  • Se o(a) contratado(a) pedir demissão alegando ter recebido uma proposta melhor, faça uma contraproposta oferecendo metade do valor e diga que compensará nos vales (sempre funciona!).
  • Faça mais reuniões para “alinhar” o processo de desligamento.
  • Fique dias sem dar satisfação ao contratado(a) sobre o processo de desligamento.
  • Durante o desligamento crie situações onde o(a) agora ex-contratado(a) sinta-se cometendo o maior erro de sua vida.
  • Se ele(a) não se sentir assim, cobre ($$$) por sua demissão.
  • Toque o terror e no fim das contas deixe por isso mesmo.

Foi apresentado acima o Manual de Exploração do Iniciante, que apesar de estar em tom sarcástico e, de certa forma até cômico, mostra situações e condições reais que acontecem todos os dias na área de motion, animação e afins. A verdade é que não devemos nos permitir ser abduzidos pela indústria dessa forma, devemos cada vez mais falar sobre isso para que toda essa exploração e absurdos sejam combatidos, pois tais situações impactam diretamente na nossa saúde mental e física.



Artes de capa e corpo do texto por Gabriela Maluf.

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