Até um surdo legenda vídeos

Esse post foi escrito pela autora convidada Alana Pacheco, uma Motion Designer que tem deficiência auditiva; e nesse artigo ela conta sobre como chegou no mercado de animação e os desafios que encontra e supera todos os dias na indústria, seja nos estudos ou fazendo jobs.

Att, Ester Rossoni




Prazer, sou Alana Pacheco, surda e motion. Vou dar um tempinho para você assimilar essa informação. O motion é uma área definida pelos movimentos gráficos acompanhados de som.

Então como diabos fui parar nesta área? Ironicamente, a deficiência foi fator fundamental nessa decisão, pelo menos em parte dela. Como boa parte dos profissionais da área, não comecei carreira no motion.

Lá na década passada, no ensino médio, minha escola tinha convênio com o CEFET, logo, fui obrigada a escolher um curso técnico para cursar. Me formei em eletrônica e comecei a faculdade pública de engenharia elétrica, já estava trabalhando como cadista em uma empresa de engenharia, meu futuro estava definido. Mas a faculdade pública não era fácil, não por conta da matéria, que nada que umas horas de estudo não resolva, mas sim pela completa falta de acessibilidade.

Aqui abro um parênteses para dar uma breve explicação sobre a deficiência auditiva. Eu perdi a audição aos seis meses de idade, em decorrência da meningite. Cresci fazendo fonoaudiologia, aprendi leitura labial na marra e usando aparelhos auditivos, para (tentar) ter uma maior adaptação ao “mundo ouvinte”, além de sempre ter cursado o ensino regular e frequentado o apoio escolar. Desta forma, eu escuto muito e mal, falo bem e com sotaque carregado. Como não tenho a memória auditiva que as pessoas adquirem antes de aprender a falar por repetição, os aparelhos me permitem escutar bem, mas sem entender algumas palavras. Aprendi a falar por meio de “treinamento cachorrinho”, acertando as pronúncias com apoio fonoaudiólogo (mas sem o biscoitinho), até hoje faço fono para corrigir algumas pronúncias e tentar melhorar a memória auditiva.

Momento curiosidade: O sotaque carregado anasalado típico dos surdos oralizados se deve ao fato de não confiarmos na própria audição e assim jogamos a voz para que possamos “sentir” que estamos falando, vocalizando no lugar “errado”.

Fecha parênteses, estou na faculdade pública de engenharia, os professores falam de costas, me impedindo de fazer leitura labial, não tiram minhas dúvidas, me reprovam por falta, mesmo sem ter faltado nenhuma aula e ainda solicitei intérprete de LIBRAS, mesmo sabendo só o básico, para poder me passar as datas das provas e trabalhos solicitados, o que me foi negado. Os poucos professores que davam algum mínimo apoio, eu ia bem na matéria. Avaliei friamente a situação e cheguei à conclusão de que f*da-se.

Eu gostava muito de ser cadista, mas já estava percebendo que não curtia a parte teórica, os cálculos, as planilhas, o que eu curtia mesmo era mexer no software, pegar a tela em preto, no caso, e sair um desenho completo do nada. Desta forma, no mesmo ano, abandonei a faculdade pública, prestei ENEM novamente e entrei na faculdade particular com bolsa. Com apoio de intérpretes de LIBRAS, me formei em Design com CR 8. *oclinhos*

Até aqui já notamos que sou minimamente inteligente, que escrevo bem e por ter uma deficiência sensorial, os outros sentidos naturalmente se aguçam e a visão ficou bem detalhista. Apesar de tudo isso, fiquei desempregada por um ano. Foi em um cargo de assistente de designer gráfico que eu tive minha primeira oportunidade profissional como designer. Me desenvolvi muito em pouco tempo e em determinado momento, foi necessário criar novos vídeos a partir de um vídeo já produzido anteriormente.

Bora de tuto no Youtube, aprender como que faz isso. Assim, me deparei com um problema: as legendas automáticas são terríveis e poucos canais do Youtube se dispõem a corrigir as legendas. Então meu conhecimento acaba ficando com lacunas, por isso acho de extrema importância, no meu caso em específico, ter pessoas com mais conhecimento por perto para encher o saco, fazer perguntas idiotas mesmo, pois não vou encontrar essas respostas de forma clara em outro lugar (obrigada pela paciência, Garotas do Motion). Até procurei cursos on-line, mas poucos disponibilizam legendas em português.

Vídeos produzidos, até que curti essa experiência, a partir daí veio mais demandas de vídeos e naturalmente virei motion. O que pega mais é justamente essa parte do som, que é uma parte importante do vídeo. Às vezes as trilhas que escolho casam, às vezes não. Muitas vezes não coloco som de transição, pois já confundi som de isqueiro com clique de mouse, são coisas que fazem parte da deficiência mesmo e nesse momento preciso de algum ouvinte para ter um feedback mais certinho.

Por ser surda, as pessoas ficam com receio antes de me conhecer, mas na convivência, todos acabam esquecendo deste fato, até que me veio a solicitação de legendar um vídeo. Antes de dizer que “não dá, gente, vocês tão de sacanagem com a minha cara”, eu vou tentar sim, vai que consigo, sei lá. Com o script em mãos, observei as ondas de som e alinhei cada frase com cada áudio tão perfeitamente que também passei a legendar muitos vídeos desta forma. Observar as ondas me ajuda a fazer cortes nos momentos corretos.

Até que me veio a solicitação de legendar sozinha um vídeo, aí eu ia falar “ah, gente, peraí, né”, mas lembrei da legenda automática do Youtube, poderia ser uma opção. Subi um vídeo em modo privado, baixei o arquivo .srt, alinhei no Premiere junto com o áudio e nesse momento preciso do apoio auditivo de alguém para corrigir a legenda.

A falta de legenda em cursos e tutoriais no Youtube atrapalha bastante, pois às vezes é uma dúvida besta, mas que são necessários vários vídeos até achar um com uma legenda que faça sentido ou ir me guiando pelo mouse na tela pra entender o que está acontecendo, um exercício simples que não consigo fazer porque a legenda cagou justamente em uma parte importante. Muitas vezes recorro aos textos da própria Adobe, mas não é a mesma coisa, com as dicas riquíssimas de pessoas experientes.

Outra coisa que é impossível para mim é escutar vídeos em formato podcast. Muitos vídeos eu sei que daria para fazer outra coisa enquanto “escuto”, mas por conta da deficiência, eu escuto com os olhos, lendo a legenda ou os lábios e fazer isso o dia inteiro é cansativo mesmo. Muitas vezes, depois de um dia inteiro legendando vídeos, prestando muita atenção no áudio, eu tiro uma soneca de meia hora só para “resetar” o cérebro.

Mas porque insisto em ser motion? É difícil, complicado, complexo e tudo em dobro, triplo no meu caso. Eu tenho facilidade em aprender softwares e vou dar conta disso, como tive que me virar para aprender qualquer coisa nesta vida de deficiente. Precisar de ajuda não é sinônimo de incapacidade, precisamos normalizar o “não sei, mas vamos aprender, vamos fazer, vamos tentar, vamos conseguir”.

E aí, bora legendar uns vídeos?

Artes de capa e corpo do texto por Bee Grandinetti.

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