Essa é uma tradução livre do artigo “An Insider’s Look At Working In The Anime Business“, publicado originalmente no Kotaku USA por Brian Ashcraft, onde entrevista o animador / ilustrador francês Thomas Romain que já atua na indústria de animes do Japão a mais de uma década.
Então você sonha em se mudar para o Japão e trabalhar na indústria de animes. Mas como seria isso? Bem, basta perguntar a Thomas Romain. Nascido na França, Romain – então com seus 39 anos -, mudou-se para Tóquio em 2003, indo trabalhar como co-diretor e diretor de arte em uma série de anime franco-japonesa chamada Oban Star-racers.
“Essa foi uma série originalmente criada por um amigo, Savin Yeatman-Eiffel. Passamos alguns anos desenvolvendo o projeto em Paris, em seu apartamento, com quase nenhum dinheiro. Tivemos que mudar para o Japão para alcançar esse sonho.” – Thomas Romain
Savin conseguiu garantir o financiamento com parceiros europeus, e quando os dois apareceram no Japão, eles trouxeram milhões de euros para fazer a série com um estúdio japonês. Após a conclusão da produção, Romain decidiu permanecer no Japão.
“Eu amo desenhar, adoro animação 2D, e esse é o melhor país para trabalhar se quiser aprender o ofício. Há tantos animadores brilhantes, diretores, estúdios; produzindo conteúdo interessante. Eu só queria fazer parte disso, a qualquer custo.” – Thomas Romain
Contratado por um estúdio conhecido como Satelight, Romain começou a projetar backgrounds para o Engage Planet Kiss Dum, um anime de ficção científica. Ele diz que a série era “uma bagunça”, e um dos piores projetos em que trabalhou até agora, mas o visual era legal e os outros funcionários eram incrivelmente talentosos.
“Mas a gestão foi horrível e passamos por problemas inacreditáveis. Como minha primeira experiência em um autêntico anime japonês, fiquei desapontado. Aprendi muito sobre o quão ruim pode ser uma produção. Grandes lembranças.” – Thomas Romain
Depois disso, Romain passou a criar o concept de Basquash!, além de trabalhar como Diretor de Arte, Mechanical Concept Design e Key Animator, na série. Ele também fez direção artística para Senki Zessho Symphogear, design de naves para Space Dandy e trabalhou como Diretor de Supervisão em Cannon Busters. Em seu tempo livre, Romain também criou o projeto Father & Sons’ Design Workshop.
Como todos esses anos de experiência, Romain é uma das melhores pessoas para tirar dúvidas sobre a indústria de animes. Enviei-lhe uma lista de perguntas sobre como é atuar na área.
Qual o seu conselho para profissionais que desejam trabalhar com animes no Japão?
O primeiro conselho que costumo dar é: aprenda japonês. Infelizmente, uma equipe de produção japonesa dificilmente compreende inglês. Você não será contratado se não puder se comunicar com eles, então, se quer trabalhar no Japão, você precisa fazer o esforço de aprender o idioma.
O segundo conselho é que quanto mais cedo começar, melhor. Estúdios japoneses preferem contratar jovens inexperientes. Você não precisa ter mestrado em animação; alguns anos de treinamento artístico básico é suficiente para começar como animador júnior. Mas a conseqüência é que o salário é muito baixo. É melhor considerar esse período como um longo estágio, durante o qual você será ensinado por um senpai enquanto trabalha em produções em andamento.
É bom estar ciente de que as habilidades de desenho não são necessárias para trabalhar nesta indústria. Você pode trabalhar como assistente de produção, editor ou artista de composição por exemplo. Nenhum desses trabalhos exige saber ilustração, mesmo que queira se tornar um diretor. Muitos diretores de anime começaram como assistentes de produção e nunca foram à escolas de arte.
O terceiro conselho é não vir com bolsos vazios. Você não receberá o suficiente para se sustentar até se tornar suficientemente bom; e isso pode demorar alguns anos.
Como você conseguiu um emprego na indústria japonesa?
Basicamente, tomei umas bebidas em um izakaya com o chefe, entretendo-o dizendo coisas estúpidas em um japonês ruim. Fui contratado duas semanas depois disso. Em uma nota mais séria, consegui ganhar o respeito da equipe japonesa durante os dois anos e meio da produção dos pilotos de Oban Star, trabalhando muito e fazendo centenas de horas extras não remuneradas. Eu até trabalhei no dia do meu casamento, o que foi estúpido quando penso nisso, mas significava algo para mim naquele momento. Este é o Japão, e você precisa se fundir com seu ambiente para sobreviver. Depois de demonstrar que é talentoso e trabalhador, você nunca terá de se preocupar em encontrar um emprego no campo de animação no Japão.
O que te surpreendeu sobre criar animes no Japão?
Fiquei surpreso com o quão humilde são todas as equipes de anime, e quão terríveis podem ser suas condições de vida, em comparação com a situação da indústria de animação do Ocidente. Em poucas palavras, o dinheiro não retorna aos animadores (e outros trabalhadores), – eles são pobres. A maioria deles passa grande parte de suas vidas sentados em suas mesas; são solteiros(as), porque não têm tempo suficiente nem dinheiro suficiente para construir uma família. Alguns deles também são extremamente tímidos, e nem sequer respondem quando você fala “olá!”. Pode ser perturbador no início.
Mas as pessoas são muito amigáveis e intrigadas por ter estrangeiros entre eles dispostos a viver uma vida semelhante. A maioria não entende por que queremos trabalhar com animes, porque eles sabem que é um trabalho muito difícil, com salários baixos e muitas horas extras (não pagas). Para nós, os animes são emocionantes por serem exóticos, mas para eles é apenas comum. Não penso que possam entender o nosso sentimento como estrangeiros que trabalham no Japão, a menos que tenham experimentado o fato de viver fora do próprio Japão, ou mesmo viajar para o exterior de tempos em tempos, o que a maioria deles nunca fez, porque não podem pagar.
Também fiquei surpreso ao perceber que todos os animadores japoneses não eram gênios. Sabe como é, temos acesso apenas as obras-primas, como filmes do Studio Ghibli ou séries como Cowboy Bebop, que foram lançados na França antes de eu ir para o Japão; assim pensei que todo animador japonês poderia desenhar como um deus. Eu estava errado. Há deuses de animação como Toshiyuki Inoue, mas também há muitos animadores de baixo nível que só podem sobreviver nessa indústria, porque muitas séries são produzidas e os estúdios que procuram desesperadamente por equipes não têm outra opção senão oferecer-lhes empregos.
O bom é que se você não é muito ruim e tem uma boa ética de trabalho, nunca estará desempregado.
Como foi sua experiência?
Minha experiência não foi tão ruim, caso contrário, eu voltaria para a França. Depois de ser empregado pela empresa francesa que estava produzindo o Oban Star-racers, o estúdio japonês Satelight contratou-me como diretor de arte. Nesse nível não é um problema se sustentar; você só precisa administrar a grande quantidade de trabalho sendo eficiente o suficiente, sem ser perfeccionista.
Em um nível artístico, estou bastante satisfeito. Tive a chance de trabalhar em um certo número de animes bem conceituados, e mesmo não sendo fã de todo o anime em que trabalhei, o design em si era interessante. Melhorei bastante durante todos esses anos. Estou pronto para dar o melhor de mim mesmo nos projetos vindouros.
Qual a parte mais difícil de se trabalhar na indústria de animes?
A grande quantidade de trabalho em um curto período de tempo, com certeza. Fiquei surpreso com o quão curtos podem ser os prazos de produção, e quão escassas as equipes são devido a escassez de artistas. Os estúdios estão abertos 24 horas por dia, 7 dias por semana, e as pessoas também trabalham nos feriados e fins de semana. Você recebe e-mails durante a noite. É totalmente normal ter reuniões durante a noite ou nos fins de semana. Você realmente precisa estar pronto para trabalhar duro, alcançar o mesmo nível de compromisso que seu colega de trabalho japonês, caso contrário, o risco é que eles não o aceitam como um deles.
Fiquei surpreso com o número de milagres de produção. Os japoneses têm a capacidade de alcançar tarefas impossíveis muito rapidamente, apenas quando não têm outras opções. Embora seja mais razoável recusar essas condições, todos cumprem. Na verdade, isso acontece o tempo todo. Nada se move de acordo com o planejamento inicial. É somente quando todos pensam que não há tempo restante, que o projeto nunca será concluído no tempo certo, que a produção acelera. As pessoas trabalham dia e noite até o último segundo. Quando você vai ver um filme no dia de lançamento ou assistir a um anime na TV, saiba que a equipe estava trabalhando nisso há alguns dias, ou mesmo algumas horas atrás. Às vezes nem sequer terminou, e os frames são polidos para a versão DVD / Blu-ray.
Quais histórias de terror você ouviu na indústria ?
Não é só que ouvi histórias de terror, eu as vi. Basicamente, a maioria das pessoas está com excesso de trabalho. O problema é que, na maneira tradicional japonesa de se comportar, elas costumam dizer sim quando são convidadas a trabalhar em condições impossíveis. Para o bem do estúdio e da equipe do projeto, eles irão fazer o impossível, até ficar vários dias sem ir embora, colocando sua própria saúde em risco. Vi pessoas indo para casa apenas uma vez por semana, ou trabalhando 35 horas seguidas. Até conheci uma diretora de animação que ia pra casa apenas uma vez por ano – ela não alugava um apartamento -, estava morando no estúdio, usando o banheiro público e os cafés para descansar um pouco de vez em quando. Um casal, um diretor e sua esposa character design, estavam acampando em um canto do estúdio, dormindo em sacos de dormir até a produção terminar. Algumas pessoas também não se permitem descansar, mesmo que estejam doentes, porque não querem gastar seu pequeno salário em cuidados médicos.
A expectativa de vida entre animadores não é muito alta. Eu vi pessoas morrendo no trabalho. O pior são os que morrem de karoshi (morte por excesso de trabalho). Um dos meus colegas faleceu de um acidente vascular cerebral, há 10 anos, enquanto trabalhava num estúdio diferente (trabalhar para várias empresas ao mesmo tempo é bem comum). Outro mal se recuperou de um derrame grave. Recentemente, ouvi sobre a morte de um animador trabalhando em uma série bastante famosa, mas todos mantiveram em segredo, provavelmente para não ferrar com a imagem da empresa.
Dito isso, as pessoas são muito amigas, porque basicamente todo mundo sabe que estão experimentando as mesmas condições. Elas compartilham o mesmo destino, trabalhando nessa terrível indústria, mas fazendo algo que amam profundamente. As reuniões de trabalho são divertidas. Há muita risada e curtimos a criação dos animes.
Qual a maior facilidade de atuar na indústria japonesa de animes?
Estar cercado por animadores e diretores talentosos e dedicados é muito motivador. Não me sinto sozinho no estúdio. Na verdade, estou escrevendo esta resposta as 00:30, numa sexta-feira e há muitos funcionários trabalhando ao meu redor.
Como ser bem-sucedido na indústria de animes?
Bem, a primeira coisa importante é a dedicação ou perseverança. Você não pode simplesmente entrar na indústria e ser bem-sucedido de imediato. São necessários meses, anos. Ganhar a confiança da equipe japonesa é a chave. A qualidade mais valiosa que você pode ter, do ponto de vista de um gerente, é o respeito pela programação. Se você conseguir completar suas tarefas no tempo, com um certo nível de qualidade, você poderá subir rapidamente.
A segunda coisa é a capacidade de se fundir com a equipe de produção, do ponto de vista japonês. Compreenda os conceitos de tatemae e honne, aprenda a conversar com seus colegas com o idioma adequado. Decifrar os códigos e hábitos culturais é importante se quer ser aceito e assim ser recompensado com cargos interessantes. Isso é algo que não se aprende nos livros. É necessário estar lá e ficar atento ao seu redor.
Transforme suas diferenças culturais em uma vantagem. Se o diretor e os produtores estão procurando uma abordagem original, ou alguém que possa compreender profundamente os aspectos culturais da configuração de um anime que não ocorre no Japão, talvez você seja ainda mais adequado para o trabalho do que um artista japonês. Tente entender onde está sua força. Eu recomendo não competir diretamente com os japoneses imitando seu estilo, pois o risco de ficar sempre atrás é alto. Mas, ao mesmo tempo, você precisa atender às suas necessidades. Existe um equilíbrio difícil entre oferecer uma abordagem original como artista estrangeiro, e fornecer obras de arte formatadas que são fáceis de usar na produção.
Como trabalhar no Japão mudou você?
Como artista, trabalhar com animadores japoneses me ajudou a crescer e progredir. Aprendi a ser mais preciso na forma como crio as coisas; para não só me concentrar nas formas e visual, mas penso na forma como o design ficará em cena. Também aprendi a ser paciente, a aguardar a minha vez. Os japoneses vão dar-lhe oportunidades de trabalho agradáveis quando acharem que você lutou o suficiente para merecer. Os atalhos não funcionam aqui, e de uma forma que é reconfortante. A indústria é construída com base na experiência e na confiança. Onde quer que trabalhe, você pode ter certeza de estar em um ambiente estimulante onde pode respeitar as pessoas acima de você e aprender com elas.
Você tem algum conselho para quem quer melhorar como artista?
Bem, tudo depende da definição de artista que você escolher. Se “artista” significa uma pessoa criativa que segue seu caminho ao encontrar seu próprio estilo e mensagem, e pode influenciar outras pessoas ao redor, não tenho nenhum conselho bom a dar. Imagino que visão, perseverança e comunicação são as chaves.
Mas se por “artista” você quer dizer um profissional em uma indústria criativa, que pode ganhar a vida com sua “arte”, obviamente, há alguns conselhos razoáveis que posso dar.
Eu recomendaria construir habilidades acadêmicas fortes ao invés de desenvolver um estilo particular. Desta forma, você poderá se adaptar às diferentes necessidades e estilos de produção ao longo de sua carreira.
Seja ambicioso, mas não seja demasiado impaciente. Provavelmente já há pessoas mais experientes e talentosas aqui na indústria que merecem acesso a posições importantes mais do que você, por enquanto. Respeite-os, aprenda com eles e aguarde sua vez, porque eventualmente virá. Esteja pronto para esse momento. Isso não é uma competição esportiva; espero que você ainda esteja ativo com 50 ou 60 anos. Essa é uma lição que aprendi no Japão.
Faça muitos amigos na indústria – você provavelmente aprenderá muito com eles. Compartilhe seus sucessos e fracassos, cresça com eles, desenvolva um verdadeiro espírito de equipe. Eles irão ajudá-lo quando você precisar, e você definitivamente precisará. Compartilhe suas técnicas e experiência com artistas mais novos. Isso os ajudará a crescer e você ganhará seu respeito ao mesmo tempo. Todo mundo se beneficiará disso.
Também recomendo o desenvolvimento de habilidades fortes em um determinado campo. Torne-se um especialista em um domínio específico, mas continue praticando outras habilidades em um nível menor. É importante continuar experimentando coisas novas, desafiar-se.
FONTE – Tradução livre do original “An Insider’s Look At Working In The Anime Business“, publicado originalmente no Kotaku USA por Brian Ashcraft.