A admirável cumplicidade entre Diretores e Montadores | Ctrl+Alt+N

Artigo escrito pelo autor convidado, Maurélio Toscano, que atua como roteirista, montador e diretor audiovisual.

Montar um filme é, antes de mais nada, participar da construção de um sonho. Tal qual um casal construindo um lar: escolhendo a mobília, eletrodomésticos, a cor das paredes; diretor e montador, durante o processo de montagem, partilharão de sentimentos similares; estarão conectados fazendo escolhas, compartilhando de seu repertório e se desnudando de forças e fraquezas o tempo inteiro. Sim. É um desnude o tempo todo!

Pois é, na montagem onde se reside as dores; aquela sequência deu certo? Conseguimos fechar o filme em quantos minutos? A atuação dos atores funcionou segundo a visão e estética do filme? E é na fase da montagem onde todas as vozes atribuladas do set se calam, abrindo assim, espaço para um relacionamento 1 a 1 (quando não há produtores executivos, assistentes ou roteiristas no processo) onde a única voz imperativa é a da reflexão.

Pois é! montar é estar de fronte com a verdade. Existe um velho clichê no cinema que diz que “um filme nasce e morre 3 vezes durante sua execução”. Isso porque um filme passa por transformações em suas três macro fases: pré-produção, produção e pós-produção Ou seja, cria-se o roteiro, filma-se algo diferente e, ao final, monta-se um terceiro filme. É bem verdade o que dizem: nenhuma estratégia resiste ao campo de batalha. Na montagem não é diferente. Você pode (e deve) planejar bastante antes de rodar, entretanto, é bem possível que montará algo um pouco ou muito diferente daquilo que se concebe no set ou na pré-produção.

Recentemente, um caso chamou-me a atenção e motivou a escrita deste artigo: Sally Menke, profissional que montou todos os filmes de Quentin Tarantino, foi encontrada morta em Los Angeles. Sem suspeitas de crime, credita-se a morte de Sally à onda de calor que atingiu o sul da Califórnia e elevou as temperaturas no centro de Los Angeles a níveis recordes de 45 graus.

Ao passo que, sabe-se da relação de cumplicidade entre Tarantino e Sally. Parceria que durou mais de 2 décadas, desde de Cães de Aluguel, o primeiro grande filme de Quentin Tarantino. Entretanto, Sally tinha um diferencial: sabia domar como ninguém o comportamento caricato e hiperbólico do diretor. Um exemplo disso está na própria fala de Sally no documentário cutting the edge:

Mas é aí que reside um gap interessante. Por que Tarantino mantinha Sally como montadora exclusiva? Claro que há muito talento nos cortes da montadora, mas ele poderia montar com quem bem entendesse. E, pelo menos para mim, só há uma justificativa: montar um filme é muito mais do que técnica, linguagem ou talento. Montar um filme é um encontro. E quando este encontro acontece. Não há volta.

Sally e Tarantino não é o único caso de parceria no cinema. Há outra muito conhecida como o encontro de Francis Ford Copolla com Walter Murch. Dois gigantes da cinematografia mundial. Este encontro ficou mais evidente em Apocalipse Now. Filme que fez Copolla querer tirar a própria vida, fato registrado pela mulher do diretor durante o making of e que, posteriormente, virou um documentário: hearts of darkness a filmmaker’s apocalypse.

Isso porque o processo foi um total desastre. Houve de tudo: furacão derrubando o set, guerra civil nas Filipinas (país onde foi rodado o longa), brigas homéricas com Marlon Brando a respeito de seu peso para o papel, investimento próprio e atrasos e mais atrasos. A algazarra foi tamanha que Copolla gravou mais de 200 horas de material bruto. Isso mesmo. 200 horas de filme.

Ao passo que, quando o filme foi para ilha de edição, Copolla resolveu viajar e deixou a bomba nas mãos de Murch. Acredito que se fosse outro montador, não conheceríamos esta obra-prima do cinema. Somente um montador com qualidades às de Murch conseguiria montar aquele filme com tamanha maestria.  Somente um relacionamento com respeito mútuo entre profissionais poderia gerar tal resultado.

Por fim, ser montador/editor é ser apaixonado pelo que faz. É ter aquela chama interna de fazer um filme ir além; aquele fogo de entender quais as possibilidades para aquele projeto. Logo, não consigo deixar de pensar quão icônico é uma onda de calor tirar a vida de Sally. Prefiro pensar que o calor interno de Sally nos deixou! Uma pena.

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