Eu sou uma surda oralizada, o que significa que eu falo (um pouquinho estranho, mas falo), e um dos estereótipos presentes na sociedade é o fato de que todo surdo necessariamente se comunica em Libras. Então, toda vez que alguém com essa mentalidade “óbvia” me conhece, vem o choque ao descobrir que sou surda desde os seis meses. O choque é maior ainda, a ponto de as sobrancelhas da pessoa chegarem no limite do cabelo, quando descobre que só sei o básico de Libras. Aí as pessoas caem durinhas no chão (nem te conto o que acontece quando descobrem que sei dançar).
Hoje em dia, o implante coclear em crianças surdas permite o desenvolvimento da fala de forma plena e a criança nessa situação normalmente convive mais entre surdos oralizados ou ouvintes, tendo pouco contato com a Libras ou a cultura surda em si. E, quando cresce, pode optar por aprender Libras ou continuar com a comunicação exclusivamente oral. Só que também existem muitos casos de adolescentes, adultos e idosos que perderam a audição. Segundo essa lógica, essas pessoas deveriam obrigatoriamente aprender Libras para ontem?
Hora da fofoca: existe uma treta no submundo da surdez, uma “guerra silenciosa” entre grupos de surdos sinalizados que consideram que o uso da tecnologia para ouvir seja uma espécie de negação da deficiência e faz com que a cultura surda (que é muito rica, por sinal) seja desprezada e o ensino de Libras desestimulado (realmente é). Também rolam fake news, como o implante coclear atrair raios (?). Já surdos oralizados se adaptam melhor ao mundo ouvinte e, embora com várias barreiras, tendem a ter interesse em aprender Libras de forma natural, tanto para se comunicar com os surdos sinalizados como para usufruir da cultura surda, que conta com muitos projetos sendo tocados exclusivamente em Libras, como Min e as mãozinhas.
Libras é a sigla da Língua Brasileira de Sinais, língua essa que não é igual ao português. É uma língua baseada em gestos e expressões faciais e corporais, o que dispensa muitas regras inerentes ao português, com a qual os surdos oralizados e ouvintes estão acostumados. Por essa razão, surdos sinalizados, que têm a Libras como língua principal, têm dificuldades de compreender plenamente o português com todas as regras que até a gente tem dificuldade de entender. O fato de surdos sinalizados “escreverem errado” não pode ser considerado burrice, falta de atenção, nem nada disso. É simplesmente a Libras na sua forma escrita e a sociedade deveria compreender melhor essa diferença, já que a Libras é reconhecida como uma segunda língua oficial do Brasil. Assim como existe o português brasileiro, também existe o LGP, sigla da Língua Gestual Portuguesa, onde alguns sinais são realmente diferentes. O nosso P, por exemplo, é igual ao K, só que com o dedo médio para baixo.
Existe muita gente surda que não tem acesso a muitas coisas, ainda mais em tempos de pandemia, onde tudo se tornou online. A janela de Libras é necessária e as legendas também. Antigamente, eu não podia ver desenhos animados com diálogos complexos, pois é como assistir um desenho em alemão, e, somente há pouco tempo, com a popularidade dos streamings que têm incluído desenhos com legenda em português, é que finalmente assisti alguns filmes da Disney, por exemplo. Como alguns filmes e séries brasileiros ainda estão deixando a desejar nesse quesito, acabamos assistindo séries e filmes estrangeiros, porque muitas vezes não têm opção de legenda na própria língua. Aulas e reuniões online? Só com apoio do Web Captioner , app que salvou a quarentena de muitos surdos.
A Libras é uma língua bonita, interessante e deveria ser usada com mais frequência, tanto inserida nos conteúdos quanto com o uso da janela de Libras, como o Ramon faz. Lembram do início da quarentena, quando os artistas músicos usavam intérpretes em Libras? Esse apoio deveria ser normalizado para todos os conteúdos possíveis.
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Ilustrações de capa e corpo do texto da LGP por biakosta.