O FILME BRASILEIRO ‘BOB CUSPE’ É O CANDIDATO MAIS PUNK AO OSCAR DESTE ANO

Uma das joias mais surpreendentes do circuito de animação em 2021, Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente, de Cesar Cabral, é diferente de tudo o que normalmente se vê em longas de animação: uma engenhosa mistura de documentário e animação em argila, misturado com uma vibe punk.

Pense em Will Vinton fundido com William S. Burroughs, com uma pitada de Mad Max e The Clash, e você tem uma ideia do filme, que ganhou prêmios em Annecy e Ottawa.

Bob Cuspe, que foi feito por US$ 1 milhão com uma equipe de cerca de 200 pessoas, é dividido em duas histórias. Na primeira, o famoso cartunista brasileiro Angeli é entrevistado por uma equipe de filmagem. Ele fala de suas lutas como artista e de estar frequentemente preso a criações de personagens que ele superou – principalmente seu alter ego punk, Bob Cuspe. Ele já matou personagens populares no passado, e agora é a vez de Bob.

As cenas de entrevista são todas feitas com animação de argila, mas buscam um realismo e autenticidade estranhos. Vemos momentos em que Angeli apenas fica sentado entre as entrevistas, rolando em seu telefone. Ocasionalmente, vemos o microfone boom no quadro, ou a câmera simplesmente repousa sobre uma cena de uma cadeira vazia enquanto Angeli sai para fumar um cigarro.

Enquanto isso, em outro espaço – dentro da cabeça de Angeli? — Bob Cuspe e outros personagens de Angeli, incluindo um grupo de seres assassinos que se parecem com mini versões de Elton John, ficam sabendo da morte iminente de Bob. Ele decide que deve tentar escapar de sua paisagem árida e enfrentar Angeli de uma vez por todas.

Mas há um criador para encontrar, ou apenas outra criação?

Bob Cuspe é uma exploração complexa e alucinante. Por um lado, é uma celebração amorosa de Angeli. No cerne do filme, porém, está a relação entre o artista e suas criações, e também uma contemplação da noção mais ampla de identidade. A identidade é fluida, constantemente – ainda que sutilmente – mudando durante a nossa vida. No entanto, nossos antigos eus nunca desaparecem completamente. Eles vivem dentro de nós, apesar de nossas melhores tentativas de vencê-los. E personagens que Angeli matou na imprensa (notadamente o popular Rê Bordosa) continuam, como ele descobre, a viver dentro dele.

O longa se classificou para o Oscar deste ano. Enquanto aguardava o anúncio da indicação em 8 de fevereiro, a Cartoon Brew se reuniu com o diretor Cesar Cabral para discutir o filme (via correspondência por e-mail) e sua óbvia paixão por Angeli e sua arte.

Cartoon Brew: Você fez este curta-metragem em stop motion Dossiê Rê Bordosa (2008) e a série Angeli “The Killer” (2017). Isso exigiria alguma paixão pelo assunto! Quando você começou a se interessar por Angeli? O que há nele e em seu trabalho que atrai você?

César Cabral
César Cabral

Cesar Cabral: Cresci lendo quadrinhos, principalmente a revista Chiclete com Banana — que significa comer banana e chiclete ao mesmo tempo. Isso foi uma grande influência para toda a minha geração. Foi nessa revista que costumava ser vendida nas bancas que encontrei uma produção que falava diretamente com meus anseios e descobertas na contracultura.

A revista era uma mistura de quadrinhos, literatura, música e cultura pop em geral. Quando comecei a trabalhar com animação, meu primeiro curta Dossiê Rê Bordosa nasceu da vontade de abordar o universo de Angeli e criar um misto de animação e documentário. Naquela época, eu nunca imaginaria que isso se desdobraria em diferentes obras.

Você sempre imaginou um longa-metragem, ou essa ideia surgiu do curta ou série?

A ideia surgiu em uma conversa com Angeli logo após fazer o curta. Até então, considerava impossível produzir um projeto tão complexo em termos de custos e tempo de execução. Mas acredito que o momento político que estávamos vivendo, com todos os investimentos da ANCINE (agência brasileira de cinema) e do extinto Ministério da Cultura, meio que nos deixou sonhar que era possível, e depois de muita dedicação e esforço trabalho, vimos a ideia se materializando.

A intenção de produzir o longa nasceu antes mesmo da série, que na verdade foi um convite direto do Canal Brasil, empresa de TV privada que foca em produções nacionais independentes.

Bob Spit

Vemos uma produção de longa-metragem de animação bastante consistente no Brasil. Com base no que vejo nos créditos, é um equilíbrio entre diferentes níveis de apoio do governo misturados com financiamento privado. É mais fácil financiar um longa, que tem mais potencial de distribuição, do que um curta-metragem?

Bob Cuspe, como a maioria das produções brasileiras das últimas duas décadas, foi financiado por meio de investimentos públicos de diversos setores governamentais, uma vez que os setores de educação e artes e cultura tiveram grande importância para os governos que se seguiram desde o final da década de 1990.

O filme foi financiado pela cidade e estado de São Paulo, mas principalmente pelo governo federal através de sistemas de incentivos fiscais que utilizaram importantes empresas públicas como a petrolífera Petrobras, o banco nacional de desenvolvimento BNDES e o FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). Curtas-metragens não podiam chegar a esse sistema financeiro, mas costumávamos receber algumas ligações do Ministério da Cultura e de prefeituras, além da empresa estatal de desenvolvimento de mídia de São Paulo Spcine.

Nos últimos três anos, para ser mais preciso, toda essa estrutura e todo o complexo sistema criado nas últimas décadas foram desmantelados pelo atual governo federal, e agora a maioria das produtoras tem coproduções com tv e streaming ou fechou as portas.

No centro de Bob Cuspe está a relação entre um artista e sua arte. Neste caso, é uma relação entre o artista e seu alter ego. Parte do que Angeli diz me lembra o escritor Hunter S. Thompson, que certa vez reconheceu o mito de que ele finalmente assumiu o lugar da realidade. Existe algum perigo quando a criação se torna, em certo sentido, o criador?

O inconformismo de Angeli é um de seus problemas, então permitir que um trabalho pré-estabelecido cuide de sua produção artística é algo que ele considera inaceitável. Angeli não queria ser o cara que fez apenas Rê Bordosa ou Bob Cuspe. Seu trabalho está em constante mudança; ele está sempre ciente da passagem do tempo e, de certa forma, para seguir em frente, ele deve dissociar-se de seu passado.

Isso não significa que ele se desconectará completamente, mas que essa distância imposta o forçará a encontrar novos caminhos. Como ele mesmo diz no filme, o autor é quem deve controlar sua criação, e se não puder, é melhor assassiná-lo!

Bob Spit

Nessa linha, Angeli o criador é agora Angeli o personagem da criação de Cabral! Quão desafiador é isso quando seu personagem é uma pessoa real?

Isso! Foi um desafio criar um personagem a partir de uma pessoa real e com um universo criativo pré-estabelecido. O que fizemos foi manter um diálogo com a realidade por meio do material produzido em conversas com Angeli, e trabalhar com uma de suas criações atuais, “O Velho Cartunista”, em prol da narrativa, criando uma caricatura do autor e de como ele se relaciona com seus personagens.

E quanto ao público? Em certo sentido, toda arte, uma vez distribuída, torna-se propriedade do público. O artista ou suas intenções importam?

Acho que fazer uma obra artística vem do desejo do seu criador de expressar algo em que ele próprio tenha um interesse particular, mas que também gere interesse do público por aquele universo retratado. Então a primeira coisa que chama a atenção do público é isso, mas o que vai ser feito disso depende da perspectiva que cada um pode ter sobre o assunto.

Qual foi o contexto da entrevista com Angeli? Você gravou como uma entrevista “normal” ou foi gravada especificamente para o filme que você imaginou?

No início, iniciei as entrevistas da forma clássica, com uma lista de perguntas e uma equipe limitada a um operador de câmera e um engenheiro de gravação. Ao longo das conversas, que duraram cerca de dois anos, me adaptei e me aproximei de Angeli de uma forma mais íntima, buscando conversas que não tivessem respostas prontas, mas que pudessem aproximar algo de sua vida pessoal e processo artístico.

De certa forma, a parte ficcional do filme foi moldada pelo processo documental e vice-versa. Acho importante ressaltar que não há diálogos escritos para Angeli. Tudo o que aparece no filme vem desse processo documental, ainda que construamos O Velho Cartunista em suas performances ficcionais.Bob Spit

Você sempre soube que a história da entrevista seria feita em animação de argila? Você já pensou em fazer isso como um filme de live-action? Ou isso teria tornado a fusão das duas histórias muito difícil e talvez um pouco desconexa?

Desde o início, ficou claro para mim que deveria ser um claymation (uma técnica de animação baseada em modelos de plasticina (massa de modelar). Fiz o mesmo em Dossiê Rê Bordosa. Mas mesmo considerando a técnica de stop-motion, eu queria manter as coisas próximas da realidade, de uma forma que sempre lembrasse ao público que estamos lidando com o mundo real. Seja um microfone na cena, uma câmera que perde o foco, ou uma atuação ainda mais realista na animação, esses elementos deram credibilidade ao real, ao mesmo tempo em que permitiram uma conexão com o mundo ficcional de seus personagens.

Eu sabia desde o início que o filme culminaria em um encontro entre o criador e sua criação, mas sempre tentei manter o dilema de “onde começa a ficção e termina a realidade”.

Quão despreocupada era Angeli? Eu imagino que você o conheça bem o suficiente depois do curta e da série, mas ele apenas senta e confia onde você está levando isso? Ele está sendo entrevistado, mas não tem ideia de qual será o contexto dessa entrevista. Imagino que pode ser difícil para Angeli, como artista, parar de se envolver no processo criativo.

Angeli sempre fez questão de deixar claro que o filme era um processo artístico meu e de minha equipe, e por isso ele não se envolveria diretamente, mas acredito que essa liberdade e confiança foram conquistadas desde o curta Dossiê Rê Bordosa. Os trabalhos que criei com Angeli sempre buscaram um diálogo com o universo que ele criou, mas devo admitir que mostrar para ele qualquer coisa que criamos é sempre difícil e delicado para mim.

Bob Spit
Um dos sets de “Bob Cuspe”.

Ficou surpreso com o sucesso do filme? Certamente, seria atraente para os fãs de Angeli, mas Bob Cuspe também chamou a atenção de muitos públicos que talvez não o conhecessem. Qual você acha que foi o apelo para esse público?

Como eu disse antes, é muito difícil imaginar como um filme será recebido, e eu estava muito inseguro sobre as reações do público internacional, pois sabia que eles desconheciam o trabalho de Angeli ou sua importância para a formação política e cultural da minha geração no meu país. Mas eu também estava preocupado se esse tipo de comédia sombria, e o tipo de anarquismo que Bob Cuspe representa, funcionaria hoje em dia.

Para a primeira dúvida, Angeli não ser reconhecido internacionalmente, decidimos investir em uma narrativa que pudesse reforçar a ideia de um artista de meia-idade em crise com sua obra. Para o segundo, com Bob Cuspe e as personalidades rebeldes e sem sentido dos outros personagens, nós realmente corremos o risco.

Para dizer a verdade, estamos orgulhosos da boa recepção. Talvez seja pelo fato de o filme tratar de temas universais: é um autor em crise com sua obra versus um punk que não aceita a realidade imposta. De certa forma, esses temas se desdobram de forma mais ampla no inconformismo dos jovens com a realidade pré-estabelecida, ou nas nossas frustrações com o mundo em que vivemos ou acreditamos. Acho que isso se sintetiza com o pop devorador de punk, por exemplo.

Falando dos fãs de Angeli, você recebeu feedback dessa comunidade? Eles ficaram felizes com o filme ou tinham notas não solicitadas para compartilhar com você?

O filme foi bem recebido pelos fãs de Angeli. Há uma nostalgia que não se limita aos personagens, mas [ligada também] às músicas e referências que trouxemos daquela época. É sempre muito delicado trabalhar com personagens já consolidados, seja pela transformação da linha 2D em escultura 3D ou mesmo pela voz que damos a cada personagem.

O comentário mais significativo que recebi foi que Bob deveria cuspir mais ao longo do filme, porque, afinal, ele tem muito a disputar. Mas preferi deixar o “cuspe” para um momento especial da história, e deixar a continuação da história para o público!

“Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente” foi adquirido para a América do Norte pela Outsider Pictures, que deu ao filme uma exibição teatral qualificada para o Oscar em dezembro.


Fonte: Cartoon Brew – The Brazilian Feature ‘Bob Spit’ Is This Year’s Most Punk Oscar Contender

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