Esse post foi escrito pelo autor convidado Diego Coutinho, que atuou como Diretor de Arte no projeto de abertura do filme Between The World And Me lançado pela HBO.
– Ester Rossoni
–
Além dos desafios do processo, eu gostaria de expor a experiência que tive no papel de Diretor de Arte desse projeto. Faço isso não só porque acredito que este tenha atingido um resultado interessante, mas porque o seu processo de criação revelou para mim muito da sua relevância para os dias de hoje.
O FILME
Com base na adaptação e encenação do livro de Ta-Nehisi Coates, de 2018, no Apollo Theatre, esse especial da HBO apresenta leituras poderosas dessa obra, com filmagens documentais, vídeos de arquivos e animação, focando nas experiências do autor em sua infância vivida no centro da cidade de Baltimore. A narrativa explora a ousada noção de Coates de que a sociedade americana apoia estruturalmente a supremacia branca.
Veja abaixo a abertura do filme:
O Behind The Scenes do projeto
O BRIEFING
Minha participação no projeto começou com o convite do estúdio Elastic e da diretora criativa Hazel Baird, com quem tenho desenvolvido uma grande parceria nos últimos anos. Trabalhamos juntos em filmes como Velvet Buzzsaw, Shut Up and Dribble e, o mais recente para o Google, Trillions of questions, no easy answers. Adoro trabalhar com Hazel, pois, além da grande liberdade que tenho para criar, ela me oferece suporte nos momentos cruciais.
O briefing que inicialmente recebemos tinha os seguintes pontos:
01. Tratava-se da animação do título de abertura do filme, uma peça de no máximo 20 segundos.
02. O cliente, por já ter uma ilustradora na equipe, Molly Crabapple, para uma seção do filme, gostou da ideia de haver ilustração na abertura.
03. Deveríamos nos basear na leitura do livro e do script do filme para a criação da proposta.
04. Seria interessante se conseguíssemos usar o livro, de alguma forma, no título.
Assim, para dar início ao desenvolvimento do projeto, fiz o primeiro passe de ideias.
PRIMEIROS STYLE FRAMES
A primeira proposta: “O tiro”
Inicialmente fiquei muito impactado pelo livro, curto mas muito poderoso. Depois disso, li o script e entendi o quão forte é a relação entre ambos. O livro começa com Coates expressando sua frustração ao ver seu filho aprendendo a dura realidade americana por meio da notícia (que não é fictícia !) de que o assassino de Michael Brown seria liberto.
A diretriz inicial foi uma tentativa de fazer algo tão impactante quanto o livro.
Essa proposta começaria com uma tela branca. Então, ouviríamos o som de um tiro e, com isso, veríamos uma bala cortando a tela.
O rastro da bala lentamente se transformaria nas páginas do livro, e este, por sua vez, ao se fechar, exibiria em sua capa o título do filme. Estaria então estabelecida a relação entre o racismo que matou Brown, simbolizado pela bala, e a criação do livro.
A tentativa inicial era a de fazer algo tão impactante quanto o livro.
Essa proposta começaria com uma tela branca. Então, ouviríamos o som de um tiro e, com isso, veríamos uma bala cortando a tela.
O rastro da bala lentamente se transformaria nas páginas do livro, e este, por sua vez, ao se fechar, exibiria em sua capa o título do filme. Estaria então estabelecida a relação entre o racismo que matou Brown, simbolizado pela bala, e a criação do livro.
Segunda direção, “Os corpos pretos”
“… na América, é tradicional destruir o corpo preto.”
– frase do livro
O livro é repleto de passagens referentes à relação entre os americanos e os abusos com os “corpos pretos”. Com base nisso, pensei em ilustrá-los em poses sugestivas. Durante a animação, as páginas com essas ilustrações seriam rasgadas, não só a fim de exibir essa violência, como também de fazer referência ao livro.
“ Preto é bonito.”
Após apresentar esses conceitos para Kamilah, a diretora do filme, ela me deu um feedback; em seguida exposto ponto a ponto:
1 — Preto não é só preto: existe uma gama enorme de tonalidades da pele preta. Apesar de gostar das ilustrações, ela não via essa diversidade aí representada.
2 — Cansada de ver os pretos sendo mostrados apenas em papéis oprimidos, além do caráter de denúncia, que já havia nos frames, ela queria a ideia de que ser preto é ser bonito e, além de todas as potencialidades culturais, existe toda um lado afetivo a ser exibido.
3 — Gostou da ideia de usarmos papel rasgado, pois isso tinha uma relação muito próxima com o livro.
4 — Também gostava da possibilidade de mantermos algo mais próximo do estilo das ilustrações da Molly Crapbelle. Todos os outros materiais, como os títulos e legendas presentes no filme, já estavam sendo desenvolvidos com uma proximidade visual da aquarela.
Além de questões técnicas, creio ser válido eu expor uma percepção mais íntima de minha parte. Como Brasileiro morando em LA, eu sempre me identifiquei como um “latino imigrante”, como parte de uma minoria. Sempre me incomoda a percepção limitada de algumas pessoas que resumem o Brasil como um lugar exótico, cheio de mulheres atraentes e de homens corruptos. E, para completar, há o novo estigma do Brasil: ex-país do futebol no pós-7×1.
Todavia, dessa vez eu me senti no papel oposto àquele com o qual sempre me identifiquei. Quando a Kamilah expôs que o filme tratava, além da repressão aos pretos e da denúncia de racismo, também da exposição dos afetos e das potêncialidades que envolvem as vidas pretas, entendi que minha proposta na realidade era limitada nesse sentido. Tive a impressão de que a minha empatia estava aquém da realidade, e que, embora eu já soubesse da relevância do projeto, este ganhou novo significado, oferecendo-me uma consciência muito maior em relação à dimensão e importância desse tema.
Ainda na reunião, pedi a Kamilah algumas referências que pudessem exemplificar a visão de suas expectativas para o projeto. Dessa forma, eu poderia ter uma noção mais clara do que ela estava querendo dizer. Ela adorou a ideia, pois já tinha até uma pré-seleção de material que gostaria de compartilhar comigo.
TESTE EXPERIMENTAL
Ao recebê-lo, o projeto começou a se expandir. Havia ali mais de 2 minutos de edição. A princípio parecia que se tornaria algo mais próximo de uma edição do material, sem muita intervenção gráfica.
Vale mencionar que, até esse momento da produção, o orçamento era adequado a um projeto menor, o que determinava uma solução simples para todo o trabalho.
Devido a isso, decidi criar um tratamento que pudesse ser aplicado facilmente nos vídeos. Neste tratamento houve forte conexão entre este e o estilo da ilustração, que possui riscos sobre pinceladas de aquarela. Como é possível ver abaixo, cada “splash” de tinta é um frame do filme, e a sequência de spashs cria a ilusão do movimento. Note também o uso de muita textura, ainda na tentativa de manter o aspecto do papel.
O SEGUNDO FEEDBACK
Esse primeiro teste foi muito bem recebido. Kamilah gostou muito desse aspecto de colagem, pois para ela havia total sintonia entre isso e o filme. A única observação é a de que estávamos nos baseando demais em uma só técnica, e que isso poderia ser expandido. A partir dessa sua concepção, expandi, pois, a direção para algo baseado nessa técnica e com uma grande mistura de recursos visuais.
O CONCEITO FINAL E A APROVAÇÃO
Após o aval do produtor a respeito da mudança no tamanho do projeto, pude desenvolver algo que eu acreditava ser a solução.
Segundo os feedbacks anteriores e a seleção de vídeos e fotos enviados pela Kamilah, deveríamos manter momentos de denúncia do racismo e sofrimento histórico, entrelaçados com momentos da vida cotidiana, com cenas de afeto, beleza e arte. É nítido isso no projeto se nos atentarmos ao conteúdo da edição final, como por exemplo aos 00:35, em que logo após um casal sorrindo há um casal chorando.
Criando contrastes
America praticamente nasceu com racisma. Por isso, para exivir as fotos e vídeos desses regitros de abuso, parte seriam arquivos históricos em preto e branco e parte seria recente e colorida. Criei uma linguagem em preto e branco que serviu como base, pois, além de dar destaque e foco ao conteúdo principal, também trouxe coerência à peça toda. Em alguns frames o olhar era direcionado usando o contraste entre o preto e o branco, em outros entre o preto e branco e o colorido.
O aspecto humano
Para que fizéssemos referências claras ao livro, foram usados dois recursos. O primeiro é a capa original do livro Between The Worl and Me, presente como textura em várias partes da abertura.
O segundo é o uso de blocos de textos compondo com as texturas de papel, trazendo assim um pouco da atmosfera que se tem ao estar em contato com um livro real.
O uso das texturas de papel, todavia, vai além de somente uma referência ao livro. Isso faz parte de uma estratégia maior do projeto, a de que, por meio do gestual, do tátil, do espontâneo, do improvisado e da valorização do imperfeito, teríamos algo orgânico e necessariamente humano. Afinal, é disso que trata a abertura e o próprio filme.
Seguindo essa abordagem, fiz o uso do papel em suas mais variadas formas: amassado, dobrado, rasgado ou picotado. Outro elemento foram os splashes de tinta. Por vezes, de forma bela e suave em uma transição, por vezes de forma agressiva. Também mantive o uso de lápis rabiscando os footages, agregando mais uma camada do gestual humano.
A diretora Kamilah teve a ideia do uso de outras capas de livros relevantes ao assunto do filme como textura, agregando assim ainda mais significado às colagens.
O uso de stop motion já ficou evidente no “Behind the Scenes” aqui exposto.
Eu gostaria de terminar o artigo mencionando a colaboração de Rafael Morinaga, um grande amigo e talentosíssimo animador, na animação, nas cenas 00:36, 00:39, 00:43 e 01:06.
No mais, este foi um projeto sem recursos exuberantes e, como se pode ver no “behind the scenes”, devido à pandemia, a produção aconteceu na cozinha do meu apartamento. Não creio que isso o torne menos profissional. Pelo contrário, acredito que a sincera dedicação minha e da equipe nesse projeto resultou em algo de qualidade e com uma mensagem verdadeira e profunda.
Muito obrigado por me permitirem compartilhar meu processo criativo. Vejo vocês em uma próxima!